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Carta do Zé agricultor para Luis da cidade

01/12/2008

(Todos os fatos e situações de multas e exigências apresentados na carta são baseados em
dados verdadeiros. A sátira não visa atenuar responsabilidades, mas alertar o quanto o tratamento ambiental é desiqual e discricionário entre o meio rural e o meio urbano.)

11/2008 Carta do Zé agricultor para Luis da cidade
**Luciano Pizzatto

Luis,
Quanto tempo. Sou o Zé, seu colega de ginásio, que chegava sempre atrasado, pois a Kombi que pegava no ponto perto do sítio atrasava um pouco. Lembra, né, o do sapato sujo. A professora nunca entendeu
que tinha de caminhar 4 km até o ponto da Kombi na ida e volta e o sapato sujava.

Lembra? Se não, sou o Zé com sono… hehe. A Kombi parava às onze da noite no ponto de volta, e com a caminhada ia dormi lá pela uma, e o pai precisava de ajuda para ordenhá as vaca às 5h30 toda manhã. Dava
um sono. Agora lembra, né Luis?!

Pois é. Tô pensando em mudá ai com você.
Não que seja ruim o sítio, aqui é uma maravilha. Mato, passarinho, ar bom. Só que acho que tô estragando a vida de você Luis, e teus amigo ai na cidade. To vendo todo mundo fala que nóis da agricultura
estamo destruindo o meio ambiente.

Veja só. O sitio do pai, que agora é meu (não te contei, ele morreu e tive que pará de estuda) fica só a meia hora ai da Capital, e depois dos 4 km a pé, só 10 minuto da sede do município. Mas
continuo sem Luz porque os Poste não podem passar por uma tal de APPA que criaram aqui. A água vem do poço, uma maravilha, mas um homem veio e falo que tenho que faze uma outorga e paga uma taxa de
uso, porque a água vai acabá. Se falo deve ser verdade.

Pra ajudá com as 12 vaca de leite (o pai foi, né …) contratei o Juca, filho do vizinho, carteira assinada, salário mínimo, morava no fundo de casa, comia com a gente, tudo de bão. Mas também veio outro homem aqui, e falo que se o Juca fosse ordenha as 5:30 tinha que recebe mais, e não podia trabalha sábado e domingo (mas as vaca não param de faze leite no fim de semana). Também visito a casinha dele, e disse que o beliche tava 2 cm menor do que devia, e a lâmpada (tenho gerador, não te contei !) estava em cima do fogão era do tipo
que se esquentasse podia explodi (não entendi ?). A comida que nóis fazia junto tinha que faze parte do salário dele. Bom, Luis tive que pedi pro Juca voltá pra casa, desempregado, mas protegido agora pelo
tal homem. Só que acho que não deu certo, soube que foi preso na cidade roubando comida. Do tal homem que veio protege ele, não sei se tava junto.

Na Capital também é assim né, Luis? Tua empregada vai pra uma casa boa toda noite, de carro, tranquila. Você não deixa ela morá nas tal favela, ou beira de rio, porque senão te multam ou o homem vai aí
mandar você dar casa boa, e um montão de outras coisa. É tudo igual aí né?

Mas agora, eu e a Maria (lembra dela, casei ) fazemo a ordenha as 5:30, levamo o leite de carroça até onde era o ponto da Kombi, e a cooperativa pega todo dia, se não chove. Se chove, perco o leite e dô pros porco.

Té que o Juca fez economia pra nóis, pois antes me sobrava só um salário por mês, e agora eu e Maria temos sobrado dois salário por mês. Melhoro. Os porco não, pois também veio outro homem e disse que a distancia do Rio não podia ser 20 metro e tinha que derruba tudo e fazer a 30 metro. Também colocá umas coisa pra protege o Rio. Achei que ele tava certo e disse que ia fazê, e sozinho ia demorá uns trinta dia, só que mesmo assim ele me multo, e pra pagá vendi os porco e a pocilga, e fiquei só com as vaca. O promotor disse que desta vez por este crime não vai me prendê, e fez eu dá cesta básica pro orfanato.

O Luis, ai quando vocês sujam o Rio também paga multa né?

Agora a água do poço posso pagá, mas to preocupado com a água do Rio. Todo ele aqui deve ser como na tua cidade Luis, protegido, tem mato dos dois lado, as vaca não chegam nele, não tem erosão, a
pocilga acabo …. Só que algo tá errado, pois ele fede e a água é preta e já subi o Rio até a divisa da Capital, e ele vem todo sujo e fedendo ai da tua terra.

Mas vocês não fazem isto né Luis. Pois aqui a multa é grande, e dá prisão.
Cortá árvore então, vige. Tinha uma árvore grande que murcho e ia morre, então pedi pra eu tira, aproveitá a madeira pois até podia cair em cima da casa. Como ninguém respondeu ai do escritório que fui, pedi na Capital (não tem aqui não), depois de uns 8 mes, quando a árvore morreu e tava apodrecendo, resolvi tirar, e veja Luis, no outro dia já tinha um fiscal aqui e levei uma multa. Acho que desta vez me prende.

Tô preocupado Luis, pois no radio deu que a nova Lei vai dá multa de 500,00 a 20.000,00 por hectare e por dia da propriedade que tenha algo errado por aqui. Calculei por 500,00 e vi que perco o sitio em uma semana. Então é melhor vende, e ir morá onde todo mundo cuida da ecologia, pois não tem multa ai. Tem luz, carro, comida, rio limpo. Olha, não quero fazê nada errado, só falei das coisa por ter certeza que a Lei é pra todos nois.

E vou morar com vc, Luis. Mais fique tranqüilo, vou usá o dinheiro primeiro pra compra aquela coisa branca, a geladeira, que aqui no sitio eu encho com tudo que produzo na roça, no pomar, com as vaquinha, e ai na cidade, diz que é fácil, é só abri e a comida tá lá, prontinha, fresquinha, sem precisá de nóis, os criminoso aqui da roça.

Até Luis.

Ah, desculpe Luis, não pude mandar a carta com papel reciclado pois não existe por aqui, mas não conte até eu vendê o sitio.

** É engenheiro florestal, especialista em direito socioambiental e empresário, diretor de Parques Nacionais e Reservas do IBDF/IBAMA 88/89, deputado desde 1989, detentor do 1º Prêmio Nacional de Ecologia.*

3 Comentários leave one →
  1. 05/01/2010 13:03

    A carta-sátira mostra claramente o drama que vivem os menos protegidos, os que menos alcance têm de apoio jurídico. Na cidade não é possível multar quem suja o rio porque são muitos os moradores há menos de 20m da margem, enquanto que cada proprietário rural é um só, e é fácil multá-lo para que sirva de exemplo aos demais. Quais demais?
    Enquanto os que escondem dinheiro público nas cuecas, nas maletas, nas meias, não são punidos porque conseguem amparo jurídico, para provar que são inocentes, pune-se os que, por necessidade (nem sempre) desviam algum quilo de alimento. É mais fácil bater num “indigente” do que num “lutador de boxe”.
    Esta carta estamos disponibilizando, com os devidos créditos ao autor, em nossa página http://www.borkenhagen.net no quadro Reflexões. O Brasil precisa conhecê-la!

  2. Serafim Marciel M. D. Alves permalink
    22/01/2010 6:50

    Como passei a maior parte dos meus dias na roça e até hoje trabalho com o meio rural, gostei muito do conteúdo da carta, pois é primeira vez que vejo alguém que parece conhecer da realidade fora dos gabinetes onde infelizmente a maioria dos “protetores da natureza” fazem as leis ( leis que eles não cumprem). Parabéns ao autor da carta.
    Ninguém que trabalha no campo é a favor de destruír a natureza e muitas as vezes quando o fazem é por falta de informação (informação essas que as autoridades deveriam se empenhar mais em faze-las circular no meio rural e mostrar alternativas viaveis e práticas realmente sustentáveis).

  3. Daniel Habib permalink
    22/01/2010 12:34

    Gostaria de mudar de idéia com relação a tudo isso, mas não vejo como.

    Não nasci agricultor, mas é um sonho antigo. Trabalho com agricultores como esse que foi citado pelo Dr. Pizzato, presto assessoria, projetos e planejamento em tecnologias de base ecológica, mas é difícil.

    É difícil porque eles não têm dinheiro que pague as minhas (digo nossas) custas na cidade.

    Eles reconhecem imediatamente a necessidade e a urgência de deixar de passar veneno na comida, de parar de jogar bosta na água que outros tomam rio abaixo, de evitar o máximo que podem em tirar todas as árvores nativas no que sobra de mato para plantar mais 1/2 hectare de milho e pagar o pronaf.
    Também é difícil porque o Banco (já sabemos qual banco) não libera dinheiro para assessoria ou para consultoria ambiental para cumprirem a lei. Libera apenas para a descumprirem. O dinheiro do banco é para comprarem sementes patenteadas por conglomerados transnacionais, para comprarem máquinas e equipamentos caros, quase sempre superdimensionados e desnecessários, para comprarem o veneno que comemos todos os dias na nossa comida urbana, para comprarem os nitritos e nitratos que geram em nós, o povo que tem geladeira em casa, os cistos e nódulos em úteros, ovários, testículos, mamas, gargantas, tão comuns a partir desses fins de século XX, que se chamam adubos químicos.

    Mas em meados da adolescência decidi não trabalhar com produtores rurais, e sim com agricultores. Basicamente porque produtores são os ricos do campo e têm escolha, acesso a informação, conhecimento, dinheiro para pagar técnicos, engenheiros, projetos de pesquisa com a universidade.
    Produtores rurais têm tudo isso e usam.

    Usam. Eles não são o Zé da Roça e nem o Zé com Sono. Produtores são o cowboy de chapeu de couro, camisa xadrez que anda com o advogado de um lado e o contador de outro. São poucos mas aparecem muito na TV como os “empreendedores de sucesso” do Sebrae, do BNDES e do Banco do Brasil. São os chefes do agronegócio.
    Bem, os produtores são os que fazem marcha de tratores em Brasília para pedirem perdão pelos 40 bilhões de dívida que fazem por ano para plantarem comida trangênica de vaca e de cachorro, e os agricultores são os que vão morar na favela por verem os filhos mortos por intoxicação com o veneno que usam no tabaco, no tomate, no arroz, na maçã, na cebola; ou por serem obrigados a morar na cidade para não irem presos, porque a escola rural não existe mais, desde a nucleação imposta pelo documento do BID em 1995, e se os filhos não estudarem vão presos; ou vão morar na cidade porque o Banco (esse que não vou dizer o nome) tomou a terra para pagar o financiamento, digo, para pagar pelo veneno, pelas máquinas e equipamentos superdimensionados e desnecessários, pelos nitritos e nitratos que produzem cistos em nós, cidadãos conscientes: a parte do “povo”que têm direito à cidade porque moramos na cidade. Mas a cidade não é um direito, é uma escravidão.

    Bem, o Zé da Roça é uma pessoa não imaginária como outras quase 20 milhões apenas no Brasil, mas que no mundo passam de 1 bilhão. Ele não pode derrubar uma árvore que vai destruir a sua casa porque o órgão ambiental não tem funcionários públicos que assinem processos de agricultores, parece que os únicos processos assinados liberados são os dos produtores rurais; ele não pode ter os porcos a 20 metros do rio mesmo quando a 30 metros a propriedade já acabou, e pagar um advogado custa mais do que o preço da propriedade, mas pagar um advogado ou vários é coisa que produtores rurais sempre fazem e ganham dinheiro com isso; ele não pode contratar um empregado porque o ministério do trabalho segue leis e tem funcionários públicos que multam quem não dispõe todos os direitos urbanos para os trabalhadores rurais; mas apesar disso estima-se que mais de 25.000 pessoas trabalham em regime de escravidão em propriedades de: produtores rurais, além do quase 1 milhão que trabalha sendo sem equipamentos de proteção individual, sem salário garantido, menor de idade, sem refeições, alojamento, garantias de transporte, água potável, aspectos que podem estar combinados ou à escolha do patrão. Alguém já foi a Ribeirão Preto conversar com uma pessoa que dorme na praça? Aquele ser humano evitado pelos cidadãos urbanos conscientes. Já foi?

    Bem, não era para criar polêmica, mas percebo que o difícil no Brasil é cumprirmos a lei. A lei parece ser usada como escusa pelo direito, para quem não a cumpre ganhar dinheiro com seu descumprimento legal.

    Além do mais, manter as paisagens rurais e seus serviços ambientais ainda é um problema apenas europeu. Mas em breve esse tema da multifuncionalidade agrícola vai chegar nos ouvidos e na boca das pessoas que moram na cidade. Até lá já teremos mais alguns milhões de filhos de agricultores fumando crack nas noites do seu bairro.

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